Thursday, December 15, 2016

Humildade e Realidade

Como se percebe, a ignorância tem por efeito comum a arrogância. 

A humildade, por sua vez, não consiste essencialmente no combate à mentira, mas em se saber conviver com os que vivem nela. O menos humilde pode reconhecer o mais humilde; o menos orgulhoso pode persuadir o mais orgulhoso: mas só com consentimento deste. Caso contrário é richa.

A richa é algo em cujo ponto culminante não importa sobretudo quem tem razão, mas apenas a richa mesma.

A humildade é uma relação com o não-saber. O modo como a verdade funda a humildade é por consequência de uma disposição para este. Quanto a certa coisa, não se vai do orgulho à humildade, mas da humildade ao orgulho. 

O orgulho é uma relação com a verdade, ou o sentimento dela. Num caso é legítimo, noutro ilegítimo.

(O maior problema no olavismo, essa vertente brasileira do conservadorismo, é sua doutrina da persuasão: ele consiste numa postura ainda reativa demais para lograr o que de fato julga querer: pensar especulativo. Olavo parece ter sido humilde por muito tempo, logo depois aparece em cena com um orgulho legítimo em função disto, e mesmo quando expressa sentimentos mais agressivos, o faz em grande parte a partir deste. Mas quem sabe onde está o limite? Por isso a humildade - uma disposição e um afeto moral - não é, nem está, em certo tipo ativo de combate , sobretudo num agressivamente direto.)

O único modo de combater algo na humildade é rebater; ou seja, foca-se na relação com a verdade e com o  não-saber posta ao orador , não na verdade ou falsidade na qual o destinatário está ou não está.  Pois em última hipótese, deve se ser humilde sobretudo à Deus, e por ele devem se vincular os homens. O ser-humano não é vinculo do ser-humano, assim não é possível impor a humildade aos outros, mas solicitar e fazê-los solícitos a ela mediante uma capacidade de admiração e espanto pelos dos dotes divinos na realidade. Isto é a difícil arte de rebater: polir a reação. 

 Leva-se o foco não para os sentimentos do orador, mas para a realidade a qual sempre é e sempre foi, o que se tenta dizer. É impossível ser humilde sem reconhecer a realidade como uma tentativa, como um folheado entre enigmas e mistérios: o enigma que se decodifica, o mistério de que se esconde mais uma vez, e assim perpetuamente.

Esta é realidade comum ao orador e ao destinatário: por isso mesmo abarca ambos, extrapolando a eficiência do dizer. 

É, pois, a única estrutura, cujo arquiteto não serás tu. A ti é dado sistematizar: tecer redes.

 Orgulharia-se da posse e concepção destes sistemas, não da estrutura; ela não é nem possuída nem concebida, apenas é, e exatamente nisto nos desafia: um desafio à não possuir nem conceber, mas compartilhar, com-stituindo-se em sistemas, em redes.

 Quando colocado à prova, a corajem do humilde consiste em manifestar a legitimidade de seu orgulho mesmo correndo risco de ser ou parecer arrogante. Doutro modo a humildade é pervertida numa covardia. Num caso, o orador cuida de si perante o outro; noutro, o outro faz o orador esquecer de si.

Aquilo pelo que se é humilde, ou legitimamente orgulhoso, é a realidade; a realidade é isto que se desdobra num aspecto como desconhecido e noutro como conhecido.

Importante é relacionar o aspecto negativo da humildade ao positivo da coragem: pois a humildade parece sobretudo ser  fundamentalmente com-stituida  numa corajem para consigo. A corajem, por outro lado, prescinde da humildade, embora não prescinda daquilo que é objeto da humildade: uma relação com a falta, com o desconhecido, com o que não se consegue. Assim, para a corajem, a falta, o  desconhecido, e o que não se consegue, sempre não passarão de um "ainda".

Se ainda, humildade for tomada como uma vigilância sobre o orgulho legítimo e sua perversão como arrogância, e se ela for sobretudo uma relação com saber e não saber - como alguns preferem definir-  entre os últimos pensadores célebres o mais humilde que conheço parece ter sido sobretudo Kierkegaard. 

No texto que escrevo, defendo com orgulho a parte que se mostrar verdadeira, e trabalho com humildade - ou seja, me relacionando com o não-saber, o não-conseguir - na parte que pode ferir a realidade.

Entretanto, vale acima de tudo o que Pascal revelou com maestria: poucos falam de humildade com humildade.


Acho que, por parte de seus discípulos, se justificou pelo nome da humildade exageros retóricos de Olavo de Carvalho, não sendo isso humilde para ele mesmo, pois afinal ninguém xinga enquanto humilde, mas enquanto orgulhoso, arriscando-se à arrogância - no falso orgulho - ou concorrendo à coragem, no orgulho legítimo.





EMANUEL M. FRÓES

Salzburg, 15 Dezembro de 2016


Devemos ser gratos pelo Ser estar sendo e funcionando a todo momento, sem te cobrar nada em troca.Sentir isto é uma forma de afinar e vibra...